quinta-feira, 13 de novembro de 2008

História em construção - Parte 5

Por Ahnna A.

Os eventos da noite deixaram-no num estado de profunda consternação. Longe dos olhares alheios, o homem corpulento e de gestos largos podia agora descansar de si próprio e do seu papel de afável anfitrião.
As crianças mereciam, sem dúvida, todo o seu afecto e atenção, mas os anos pesavam e a gota importunava-o por demais. Considerava que o papel da sua vida era não ferir aqueles pequenos infantes e permitir-lhes que, até ao limite das suas forças, tirassem partido dessa idade do homem a que convencionámos chamar infância. Também ele regressava a ela, por vezes, e sabia-se incapaz de manter por muitos mais anos a argudeza de espírito que tão bem o caracterizava.
Revendo mentalmente os acontecimentos, dava-se conta da improbabilidade, senão mesmo da impossibilidade, de que um dos seus convidados tivesse estado na origem do incidente doméstico ocorrido.
Observara atentamente as reações das crianças, assim como as dos adultos, e fora-lhe impossível perscrutar nesses rostos o mais pequeno indício de falta cometida. Chegara mesmo ao limite impensável de sugerir que o bom senso prevaleceria sobre a culpa e que o faltoso, acometido pela gravidade do seu acto, se submeteria à sua compaixão.
Observara a incredulidade das crianças perante o seu gesto. A máscara caíra, pensaram certamente, crendo que o mais amado dos adultos era agora também seu detractor. Este pensamento assaltou-lhe o coração.
"Então, então, Augusto! Habitaste a cidade luz sob o judo nazi, ajudaste a criar um país, lutaste em três guerras e o teu coração cede à ansiedade de uma criança! Mudaste muito Augusto! Mudaste muito. O homem que eu conheci, não, não seria assim tão facilmente abalado!"
Engano seu, apenas. Criaturas há que reconhecem em si os piores dos defeitos e apenas aos outros é cedido o privilégio de lhe reconhecerem as maiores virtudes. Augusto era assim. Homem de acção e pensamento rápido, estava habituado a ultrapassar obstáculos. Detinha sobre si uma plena compreensão das suas faltas, das suas omissões, das suas desatenções. Não esperava dos outros menos do que de si mas era rara a capacidade de o surpreenderem e, talvez por isso, nutrisse pelos pequenos traquinas um profundo afecto. Só mesmo as crianças e a sua maravilhosa capacidade para desconcertar, surpreender, maravilhar...e sim, confessava, o júnior não era o seu favorito.
Era um homem de mulheres. Sempre amara profusamente o sexo oposto, pelo que, o carinho dedicado a essas pequenas mulheres, perdia-se na poeira do seu tempo. O que é de um homem sem mulheres, perguntava-se. Apenas uma ombreira de porta vazia. Sem paredes que a sustentem, sem portas que lhe dêem propósito.
Sim, aquelas crianças seriam um dia mulheres e, por elas, pelo seu amor por elas, entregar-se-ia à mais árdua das tarefas, sobreviver, ganhar tempo...Teria que ganhar o tempo necessário para que crescessem, para que se tornassem mulheres. Elas são as canas do rio. O velho carvalho terá de durar o tempo necessário para que, na sua sombra, elas possam crescer um pouco mais e aprender a dobrar com o vento.
A decisão estava tomada. Uma certeza inabalável fê-lo dirigir-se à sua escrivaninha. Puxou os suportes destinados a suportar um tampo de madeira, um pouco carcomido já pelo caruncho, e baixou o tampo com cuidado. Impunha-se respeitar o trabalho das mulheres da casa.
Retirou do pescoço, o fio de ouro, e com a minúscula chave que dele pendia abriu o segredo. A portinhola, apenas vísivel com o tampo aberto, permitiu-lhe enfiar uma das mãos. A enorme mão ocupava toda a abertura. Sentiu a superfície de madeira encerada confinar-lhe os movimentos, insistiu um pouco mais, o frio do metal invadiu-lhe as pontas dos dedos e o pequeno revólver deslizou. Ergueu-o e verificou as culatras. Cinco cartuchos. Um por cada culatra. Sorriu. Sim. Em redor do ovo não encontrou o menor indício de invasão das crianças, ou dos seus desorientados pais, e uma providencial tempestade abatera-se sobre a região.
"Por sorte, tivémos visitas! Sim, por sorte! Para a próxima estarei preparado.", exclamou em voz alta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Boa Ana!
Adorei! mistéro adensa-s Estou esejosa do próximo capitulo
Bjs Manuela

Anônimo disse...

Gostei muito. Boa ideia desenvolver mais a personagem do Tio Augusto.
Muito bem escrito.

Boa Sorte Helga !

Bjs Stephanie