terça-feira, 9 de dezembro de 2008

História em Construção - Parte 8

Por Moira Difelice

Tremo. Transpiro. Estou confuso. Num estado parecido àquele em que te deixei na Índia, Joaquim. Ia jurar por Deus que já não estavas entre nós. Eras mesmo tu ao telefone? É estranho dizê-lo, senti-lo passados estes anos todos mas pareceu-me nitidamente que eras tu – a tua voz cheia e pausada. Já um pouco apagada pelo tempo, é certo, mas eras tu. Conseguiste então vencer a febre da malária? Essa febre que te corroía o corpo, que te escanzelou quase até aos ossos, que te deixava a suar em bica, levando a delírios? Quase não conseguias falar e já nem me reconhecias quando te deixei. Os médicos tinham-me dado a certeza de que não sobreviverias. Deixei-te louco, às portas da morte, numa cama estreita de um quarto de fundo em casa do Miller. Miller que nos aliciara para o contrabando dos rubis para Paris e a quem devo a podre abastança que me sustenta hoje, por tê-lo traído.
Revejo imagens entre a Índia e Portugal. A chegada a Paris e a primeira vez que te vi, Elvira, ao piano do Café Constance. Fiquei logo absorto por ti, pela tua pele alva e luminosa, pelo vigor dos teus traços austeros, pela vida triste que raiava dos teus olhos. Tinhas ido para a cidade luz para te dedicares ao piano e tocavas no Constance aos fins de tarde para poderes sustentar-te e pagar o curso.
Entretanto a guerra rebentou e tiveste de fugir para Portugal. E eu, ironia das ironias, eu que ali tinha chegado para salvar um judeu, fugi contigo. Miller incumbira-me de fazer chegar os rubis a Emil, seu amigo, para que ele pudesse igualmente escapar ao jugo dos nazis. Em troca, ficaria com uma parte dos rubis para mim. Por isso tive de te deixar Joaquim, para salvar Emil pois a guerra rebentaria em breve e garantiram-me que não viverias…
Nunca te encontrei, Emil. Na verdade, não te quis encontrar, nem sequer te procurei e carrego esse fardo comigo desde então. Assim que te conheci Elvira, esqueci a minha missão de salvar Emil e concentrei todas as minhas forças em ti. Quis apagar os erros do passado e começar um futuro melhor contigo, em Portugal. Mas tu, passado que tentei despegar de mim, da minha cabeça, do meu corpo, das minhas entranhas, continuas a assaltar-me em sonhos, sempre. E agora, em vida também!
E tu, Deus? Deus em que não acreditava mas que usei como apoio e disfarce desde a fuga para Paris. Invoco-te a toda a hora mas já não sei quem és, não sei se alguma vez soube. Nunca te vi, nunca te senti. Mas, agora que era uma boa altura para apareceres, para te revelares, onde estás? Serás capaz de me explicar, tu, Deus, como terá Joaquim chegado até a mim passados estes anos todos? Quem te terá conduzido a mim, Joaquim? Quem me trai e procura vingança agora em fim de vida? Serás tu, Deus? Ou tu, Joaquim? Ou Miller? Ou Elvira? Ou Bernarda?
(Olha para a pistola) Tu que me acompanhaste também desde a Índia… Passarei a dormir contigo, debaixo da cabeça pois talvez venham resgatá-la. Poderiam Joaquim ou Miller encontrar-me aqui em Porto de Mós?
Nunca te cheguei a usar mas talvez agora te venhas a provar útil. Talvez te estreie em em mim antes que Miller ou Joaquim apareçam. Por ti, Elvira, não tenho medo de deixar este mundo. Já praticamente não comunicamos, dormimos em camas separadas, tens a companhia e a fidelidade de Bernarda e a alegria que escondes mas sentes com os pequenos traquinas. Por vocês, pequenos infantes e donzelas, mas sobretudo por vocês, pequenas donzelas, sim, tenho pena de deixar este mundo. Queria muito ver-vos crescer, Mariana, Teresa, Catarina, …

sábado, 22 de novembro de 2008

História em construção - Parte 7

Por Manuela Crespo

Augusto nessa noite caiu em desânimo. Perpassaram-lhe pela memória episódios da sua vida em imagens sucessivas, como num filme.
A Índia, aqueles dias negros. O cheiro das especiarias ainda hoje lhe fazia suores frios. A fuga súbita e desvairada para Paris. O “material” escondido em locais impensáveis. A perseguição por causa das malditas, ou melhor benditas pedras, que cegavam de ganância todos os que para elas olhavam. Mas ele era o maior. Tinha conseguido levar as pedras para Paris em plena guerra. Enganara gregos e troianos aliados e nazis. Trocara as voltas a todos com a sua beatice, com as suas relíquias verdadeiras de São Pedro, mais o nicho de fundo falso. Hoje já ninguém iria naquela conversa.
Depois conhecera a Elvira em Paris e a sua vida dera uma volta de 180 graus. Nunca mais quis saber de esquemas, de trapaças, aldrabices , falcatruas, fanfarronices. Hoje, era um homem respeitado, não o fedelho que dali saíra com uma mão atrás e outra à frente, a jurar que ia vencer na vida. E depois tivera aquele golpe de génio: oferecer o ovo de porcelana Limoges, já na altura uma preciosidade, à Elvira como prova do seu amor. Fora fácil para ela traze-lo para Portugal na maior das inocências, sem ao menos suspeitar do seu recheio. Logo na altura em que muita gente o começou a rondar... Se não fosse aquele ovo não poderiam ter tido, nunca a vida desafogada que gozaram desde então, nem aquela mansão, luz dos seus olhos e motivo de admiração da vila inteira. Nem nunca teria tido a respeitabilidade de que gozava nos dias de hoje. Pelo sim pelo não fizera soar por aí que lhe tinha saído por duas vezes a sorte grande, só para calar as bocas maldizentes, que por vezes se levantavam e inquiriam a origem de tanta abastança. Assim, ninguém estranhava e até faziam fila para serem prestáveis.
E porquê agora, ao fim de tantos anos? Porque teimava a vida em andar para trás? Em exigir o resgate daquela beatitude.
E porque telefonara agora o Joaquim, com aquelas falinhas mansas que o deixavam gélido e ao mesmo tempo destemperado. Já o tinha dado como morto, falecido, enterrado e afinal, ei-lo aqui ressuscitado do mundo das almas penadas, com exigências, como se ele Augusto, o bem-aventurado, o escolhido de Deus pudesse ser importunado daquela maneira. Era o que faltava. Passaria a dormir com a sua pistola de madrepérola, jóia da Índia, junto ao coração. E quanto às pedras … agora já estavam em lugar seguro.
Só faltava descobrir quem era o traidor que tinha dentro de casa!

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sugestões para nova enquete

Se as previsões se confirmarem e o resultado da enquete aí ao lado se mantiver, tia Elvira poderá respirar aliviada, já que a opção de que ela "deve viver" está em vantagem. Se gostaram da opção de manter uma enquete no blog, acredito que poderíamos selecionar uma outra questão relacionada a um personagem ou a um rumo para a história. Sugiram temas para a enquete nos comentários e discutimos mais na quinta-feira.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

História em construção - Parte 6

Por Helga Costa

Por momentos ali permaneceu, estaticamente absorto nos seus pensamentos. Avizinhava-se a hora de agir, e, desta vez, não podia falhar. Tinha que encontrar o plano infalível. Tinha! Tinha! Apenas porque tinha. A arma aparentava saúde, a mesma dos seus tempos jovens de pistoleira guerreira. Respirou fundo, como quem se prepara para uma prova de fogo, deixando escapar um ligeiro suspiro indignado de preocupação. E foi aí que lhe quebraram o raciocínio.
“Augusto!?”
Virou-se repentinamente e atabalhoado escondeu a arma por detrás das suas costas, sem conseguir evitar um estrondo provocado pelo encontrão que deu na escrivaninha preciosa. Mas sorriu para a mulher que se afigurava na entrada da porta do escritório, pois não podia, assim de repente, mudar o seu habitual ar paciente e condescendente. Apresentava-se o tio Augusto calmo e simpático de sempre, embora por dentro o corroesse uma ansiedade imprescutável e um medo avassalador de saber como decorreria o embaraço.
“É uma chamada para si!”. Não dirá nada? Perguntava-se, hesitando infantilmente sobre o que dizer. Pigarreou... “Sim, Bernarda, sim... Já aí estava há muito tempo? Estava aqui tão distraído que nem a ouvi chegar...”, foi o que conseguiu responder, e perguntar, sem conseguir evitar a questão nem o risinho nervoso no final das palavras proferidas. Porém, a mulher não lhe saciou a curiosidade. Por esta altura já lá ia, avisando no telefone que esperassem só mais um momento.
Arrumou a arma novamente no seu esconderijo e dirigiu-se, decidido, à sala onde se encontrava o telefone. “Estou!” Aguardava uma voz do lado de lá, que teimava em não se desvelar. “Estou sim!... Quem fala? Está aí alguém?”...
Entretanto, no seu quarto, a tia Elvira estava já enfiada na cama, petrificada com o gravíssimo acontecimento. Tão incrédula, tinha culminado numa apatia traumática e teve de ser a Bernarda a ajudá-la a ir deitar-se e a fazer um comunicado a todos: “A tia Elvira está indisposta e teve que se ir deitar. Agradece as vossas presenças, mas não vai poder voltar a reunir connosco hoje.” Disse-o assim, secamete, sem expressão, sem delongas, sem qualquer tipo de salamaleques.
Com pesar, os convidados despediam-se todos, num burburinho fofoqueiro de lamentos e adeus. O silêncio irrompeu após um novo grito, vindo algures de alguma ala da casa. O espanto ficou estampado em todas aquelas caras conhecidas, muitas bocas abertas e um olhar que pergunta: “mas o que é que foi agora?”.
Era o Tio Augusto. Aos poucos, os convidados que ele julgava já idos foram chegando à sala onde se encontrava ele e o telefone. E o cenário era aterrador. O Tio Augusto, em fúria, destruía o mais que podia o telefone, atirando-o contra o chão, pontapeando-o rebeldemente e grunhindo palavras tresloucadas, irritadas e injuriosas, vários decibéis acima do comummente considerado grito, contra um tal de “canalha” que lhe havia telefonado. Era consternador ver o tio transformado daquela forma, possuído por um demónio irado e perigoso, o que causou uma estranheza especial por ser o caloroso tio Augusto.
Naquela altura, eu não conseguia entender o que se passava naquela casa. Tudo sempre me tinha parecido tão normal, tão ordenado. Aquele súbito caos implicava uma série de perguntas soltas que ninguém tinha coragem para fazer. Eu tinha que desvendar todos os mistérios. Não conseguia descansar enquanto não descobrisse tudo. Alguém tomou a iniciativa de nos mandar todos para casa. Já era tardíssimo e, além disso, não havia por que não deixar espaço para que o Tio Augusto e a Tia Elvira resolvessem internamente os seus problemas.
No caminho para casa ninguém se atreveu a puxar conversa. Cada um falava para dentro, consigo próprio, certamente assimilando os acontecimentos daquela noite sórdida. Uma série de imagens desenrolavam-se na minha cabeça e a minha memória insistia em não me dar nenhum detalhe que pudesse servir de pista. O que poderia ter causado tamanho desnorte naquela casa? O que escondem eles de nós?

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

História em construção - Parte 5

Por Ahnna A.

Os eventos da noite deixaram-no num estado de profunda consternação. Longe dos olhares alheios, o homem corpulento e de gestos largos podia agora descansar de si próprio e do seu papel de afável anfitrião.
As crianças mereciam, sem dúvida, todo o seu afecto e atenção, mas os anos pesavam e a gota importunava-o por demais. Considerava que o papel da sua vida era não ferir aqueles pequenos infantes e permitir-lhes que, até ao limite das suas forças, tirassem partido dessa idade do homem a que convencionámos chamar infância. Também ele regressava a ela, por vezes, e sabia-se incapaz de manter por muitos mais anos a argudeza de espírito que tão bem o caracterizava.
Revendo mentalmente os acontecimentos, dava-se conta da improbabilidade, senão mesmo da impossibilidade, de que um dos seus convidados tivesse estado na origem do incidente doméstico ocorrido.
Observara atentamente as reações das crianças, assim como as dos adultos, e fora-lhe impossível perscrutar nesses rostos o mais pequeno indício de falta cometida. Chegara mesmo ao limite impensável de sugerir que o bom senso prevaleceria sobre a culpa e que o faltoso, acometido pela gravidade do seu acto, se submeteria à sua compaixão.
Observara a incredulidade das crianças perante o seu gesto. A máscara caíra, pensaram certamente, crendo que o mais amado dos adultos era agora também seu detractor. Este pensamento assaltou-lhe o coração.
"Então, então, Augusto! Habitaste a cidade luz sob o judo nazi, ajudaste a criar um país, lutaste em três guerras e o teu coração cede à ansiedade de uma criança! Mudaste muito Augusto! Mudaste muito. O homem que eu conheci, não, não seria assim tão facilmente abalado!"
Engano seu, apenas. Criaturas há que reconhecem em si os piores dos defeitos e apenas aos outros é cedido o privilégio de lhe reconhecerem as maiores virtudes. Augusto era assim. Homem de acção e pensamento rápido, estava habituado a ultrapassar obstáculos. Detinha sobre si uma plena compreensão das suas faltas, das suas omissões, das suas desatenções. Não esperava dos outros menos do que de si mas era rara a capacidade de o surpreenderem e, talvez por isso, nutrisse pelos pequenos traquinas um profundo afecto. Só mesmo as crianças e a sua maravilhosa capacidade para desconcertar, surpreender, maravilhar...e sim, confessava, o júnior não era o seu favorito.
Era um homem de mulheres. Sempre amara profusamente o sexo oposto, pelo que, o carinho dedicado a essas pequenas mulheres, perdia-se na poeira do seu tempo. O que é de um homem sem mulheres, perguntava-se. Apenas uma ombreira de porta vazia. Sem paredes que a sustentem, sem portas que lhe dêem propósito.
Sim, aquelas crianças seriam um dia mulheres e, por elas, pelo seu amor por elas, entregar-se-ia à mais árdua das tarefas, sobreviver, ganhar tempo...Teria que ganhar o tempo necessário para que crescessem, para que se tornassem mulheres. Elas são as canas do rio. O velho carvalho terá de durar o tempo necessário para que, na sua sombra, elas possam crescer um pouco mais e aprender a dobrar com o vento.
A decisão estava tomada. Uma certeza inabalável fê-lo dirigir-se à sua escrivaninha. Puxou os suportes destinados a suportar um tampo de madeira, um pouco carcomido já pelo caruncho, e baixou o tampo com cuidado. Impunha-se respeitar o trabalho das mulheres da casa.
Retirou do pescoço, o fio de ouro, e com a minúscula chave que dele pendia abriu o segredo. A portinhola, apenas vísivel com o tampo aberto, permitiu-lhe enfiar uma das mãos. A enorme mão ocupava toda a abertura. Sentiu a superfície de madeira encerada confinar-lhe os movimentos, insistiu um pouco mais, o frio do metal invadiu-lhe as pontas dos dedos e o pequeno revólver deslizou. Ergueu-o e verificou as culatras. Cinco cartuchos. Um por cada culatra. Sorriu. Sim. Em redor do ovo não encontrou o menor indício de invasão das crianças, ou dos seus desorientados pais, e uma providencial tempestade abatera-se sobre a região.
"Por sorte, tivémos visitas! Sim, por sorte! Para a próxima estarei preparado.", exclamou em voz alta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

História em construção - Parte 4

Por Daniel Escobar

Ainda hoje não consigo esquecer do rosto de tia Elvira e como ele havia se transformado. Rios de sangue pareciam ter corrido pelos sulcos que cortavam a sua face, queimando a sua alva pele. Pela primeira vez tínhamos visto o carrapito da sua nuca a ser desfeito por mãos trêmulas e descontroladas. Os olhos miudinhos rasgaram-se em um grito que vinha das profundezas de um lugar completamente desconhecido para nós até então.

Todos estávamos petrificados com a situação e assombrados com a face da tia Elvira como nunca havíamos estado mesmo nas noites de trovão e histórias de fantasmas. Catarina, a mais nova, desandou a chorar, o que tornou tudo ainda mais embaraçoso. Mesmo nossos pais pareciam atordoados pela reação de tia Elvira.

Foi neste momento que surgiu Bernarda que, como uma enguia, serpenteou pela sala. Ela passou por trás de tia Elvira e tocou-lhe os ombros. Então avançou em direção ao ovo despedaçado e as pedras vermelhas que jaziam no chão, ficando de cócoras entre nós e tia Elvira. A serviçal então lançou-me o olhar mais gélido de que possa me recordar. Levantou-se e dirigiu-se para a porta que dava acesso ao outro cômodo da casa. Antes de sair, parou sob o batente e, segurando os pedaços do ovo e as pedras nas mãos, olhou de forma cúmplice para tia Elvira, cuja expressão começava voltar ao seu conhecido ar austero.

Tudo isto não levou mais do alguns minutos mas, conforme descobriria mais tarde, entre aqueles jogos de olhar, uma parte de uma vida despedaçada havia sido exposta diante da família. Tia Elvira refez o carrapito e o sangue desceu de sua face. Ela respirou fundo, olhou-nos mais uma vez e deu as costas, voltando para seus aposentos. Catarina ainda soluçava quando tio Augusto interveio com seu largo sorriso.

- Vamos lá, crianças. Acidentes acontecem não é mesmo? Mas depois vocês contam qual de vocês quebrou o ovo, pois são bons meninos!

Havia também um "quê" de cumplicidade com a história na voz de tio Augusto. Seus métodos só eram muito diferentes do estilo "cão de guarda" de Bernarda.

Os outros adultos entreolharam-se, encararam o episódio apenas como um acidente doméstico envolvendo crianças levadas e uma velha solitária que estava valorizando demais um bibelô. Toda a confusão fez com que eles se esquecessem dos rubis, que passaram a ser encarados como meras pedras vermelhas.

Mas eu sabia que muito mais havia se passado naquela sala naquela noite. E o vermelho daqueles rubis se transformaria em um rio de sangue que atravessaria anos da nossa existência.

sábado, 1 de novembro de 2008

História em construção - Parte 3

Por Manuela Crespo

Naquela noite atravessámos a ladeira que separava a nossa porta da deles debaixo de uma revoadas de folhas outonais, que rodopiavam enlouquecidas ao som dos rufões do vento e do tamborilar da chuva. As noites de trovoada em Porto de Mós eram sempre magnificas. Aninhada num alvéolo rodeado de três serras austeras, os raios e coriscos caíam em seu redor, acompanhada de saraivada de chuva, ventos ululantes, numa dança dantesca, luzes estroboscópicas e rufar estrepitoso de tambores. Nem todos os espíritos se alegravam com esta festa. Mais uma vez a minha irmã Catarina ficou em pânico e recolhia-se o mais depressa que podia em local resguardado de preferência sem janelas.

Daquela vez o céu excedeu-se e desabou em cima das nossas cabeças. Apesar dos escasso metros a percorrer, encharcadas chegamos pois, a casa da tia Elvira, eu e a Catarina. A Bernarda recebeu-nos com um toalhão aquecido, ordem expressa da patroa, e esfregou-nos vigorosamente. Oh!, como odiávamos aquela Bernarda. Mal pudemos, fugimos da sala da cerimónia para os loucos e secretos locais em que aquela casa gigantesca era pródiga. Pouco depois chegou o resto do bando, inconfundíveis, pelo tropel de gado com que sempre se apresentavam. Cheirávamos todos a mofo, nós e a casa o que nos dava uma sensação de fusão com a tempestade. O ambiente apesar de tudo era de festa. Grandes correrias nos corredores, gargalhadas irrompiam aqui e ali fundindo-se no tilintar de copos e talheres ao longe.

Foi então que fomos todos chamados ao salão do chá por uma voz gritante, alterada, a raiar a histeria. Era a tia Elvira, ela mesma. Desta vez não se fizera substituir pela Bernarda . O caso era mesmo sério.

Quando lá chegamos, de supetão ficamos todos extasiados com a imagem que se nos deparou:

O Ovo da tia Elvira jazia caído e quebrado em quatro bocados no meio do chão. De dentro dele jorravam pequenas pedras rubinaceas como um rio sangrento.. Não conseguíamos tirar o olhos dos seus laivos de sangue. O brilho sanguinolento das pedras era hipnotizante. Era como se uma catástrofe tivesse acabado de acontecer! Era com certeza pelo menos um presságio…

Logo de seguida atraídos pela gritaria chegaram os nossos pais. Todos se quedaram boquiabertos qual aves canoras, perante tal contemplação. Escutava-se uma orquestra de murmúrios inarticulados de deslumbramento, aflição, lamentos e consolação . A Tia Elvira chorava e alguns olhos miravam cobiçosamente os pequenos rubis espalhados na carpete.

De onde vinham aqueles rubis? Quem os pusera dentro do ovo?

A tia Elvira lacrimosa, só queria saber:

- Quem partiu o meu ovo?

História em construção - Parte 2

Por Manuela Crespo

A casa dos meus tios era um majestoso palacete cor-de-rosa que ficava mesmo ao pé da minha. Tinha uma porta lateral encavalitada na ladeira com a particularidade única e exemplar de possuir uma campainha eléctrica, coisa nunca vista naqueles tempos mais dados a aldrabas e sinos de badalo. Era sempre um momento solene o de tocar a campainha. depois esperávamos alguns segundos, empurrávamos a porta sempre entreaberta e gritávamos pela fresta:

- Dá licença Tia Elvira? Empertigávamo-nos muito direitas. À nossa espera estava a velha Bernarda de avental rendado sobre a farda preta que nos encaminhava de imediato para a porta da dita sala. Enquanto a Bernarda anunciava a nossa presença, aproveitávamos aqueles momentos para correr loucamente pelo imensos corredores da mansão. O nossos passos ressoavam no soalho de madeira , como se a casa se alegrasse por receber enfim crianças. Rapidamente nos chamavam à ordem e então éramos alinhadas para sermos recebidos pela dama. Quando finalmente entravamos na saleta da especial senhora, havia sempre um laço caído uma meia derrubada ou uma madeixa solta. As nossas faces rosadas da correria eram uma lufada de ar fresco naquele mausoléu.

Havia porém outros dias menos formais de visita ao palacete. Bastava o tio Augusto estar presente.

Era uma figura imponente, que inspirava confiança. Homem de ombros largos, sorriso rasgado e olhos aguados velava sempre por nós. Era de longe o tio preferido...com ele podíamos tirar as bolachas que nos apetecia, comer o bolo perfumado até fartar, jogar às escondidas nos labirintos da casa e fazer muitas outras coisas impensáveis sobre a égide da tia Elvira. Nesses dias escondia-me debaixo de uma clarabóia colorida que ficava no topo das escadas em caracol, mesmo no centro da casa. Era como se entrasse num mundo mágico e proibido. Aí ficava, inebriada pelas transparências coloridas que os vidros projectavam nas paredes como se de um caleidoscópio se tratasse. Miríades de arco-íris! Rapidamente me abstraía daquele mundo e entrava num estado onírico onde tudo podia acontecer. O pintainho do ovo tornava-se real e até algumas histórias com tesouros aconteciam e desenrolavam-se à minha frente como num filme.

Finalmente, alguém me encontrava e me levava de volta ao mundo real:

A salinha do chá, as bolachas, o ovo de porcelana, e pelo menos uns bons vinte minutos sentada num cadeirão, de pernas penduradas e muito juntas, a olhar para a ponta dos sapatos de verniz. Finalmente o tio Augusto condoído do ar infeliz que se espelhava no meu rosto lá me mandava embora com os bolsos a abarrotar de gulodices. Aí umas três vezes ao ano havia dias muito especiais, em que em vez do chá havia um jantar. Era posta a mesa com pompa e cerimónia, talheres de prata de várias qualidades e pretensões, copos para várias beberagens, guardanapos adamascados e uma pirâmide de pratos. Estes jantares, pelo menos tinham o condão de serem muito previsíveis no que dizia respeito à ementa. Sopa de cenoura, soufflé de bacalhau, e seguidamente bife com batatas fritas. Sempre igual. Tudo impecavelmente confeccionado, delicioso, servido com um ritual imutável pela Bernarda sempre muito atenta à ordem por categorias. Os meninos é claro, ficavam para o fim. E acho que se ela pudesse mandar , nem provávamos! Depois de terminada a refeição, quando a conversa se começava a animar escapulíamo-nos dali para fora, eu, a minha irmã Catarina, e a Mariana, o Luís e a Teresa, primos. E tomávamos conta da casa. Esquadrinhávamos tudo até à exaustão da velha Bernarda que montava guarda como um cão feroz. Era nessas alturas que eu os levava à velha clarabóia onde à noite encontrava outros tesouros por explorar. Deitávamo-nos todos no chão de barriga para cima a olhar para o céu estrelado e começavam as história. Cada um contava uma história, de preferência de terror, cada uma pior que a anterior, até ficarmos aterrorizados, a olhar em volta e a ouvir milhares de ruídos que uma casa velha tem para oferecer. Finalmente a Catarina soçobrava, e num espasmo de terror desatava a soluçar. Tinha de ser mimada e consolada, e finalmente subornada para não contar nada aos adultos, e quando nem o suborno funcionava então era ameaçada de morte por almas do outro mundo se abrisse o bico. Só assim se acalmava e acabava por adormecer ali encostada a um de nós , embalada por histórias menos pavorosas. Um a um, todos caíamos, e assim as noites em casa da tia Elvira se diluíam nos sonhos da infância.

Uma vez porém, as coisas não correram de feição.

História em construção - Parte 1

Por Manuela Crespo

A tia Elvira era uma velhinha mirrada e encolhida com um ar severo já um pouco desbotado pelo tempo. A sua a face pergaminhada era coroada por uma farta cabeleira de fios de prata apartados por um risco que morria num carrapito na nuca. Tinha um ar austero com o seu nariz adunco, os seus lábio finos e afiados como laminas. Os seus olhos miudinhos perscrutavam-nos de alto a baixo, em busca de uma sujidade ou de algum desconcerto. Estava sempre sentada num cadeirão de braços, com motivos barrocos, dourados, forrado a veludo vermelho sanguinário. E ela ali permanecia imóvel, enovelada nos seus xailes, écharpes e mantas, toda de branco pérola. Além de tudo tinha manias. Muitas manias. Usava sempre níveas luvas de algodão impecáveis, por causa dos micróbios. Tinha uma imensa repugnância dos germes e defendia-se deles de todas as maneiras possíveis. Tantas vezes lavou as mãos que se feriu. Passou então a usar luvas de algodão imaculadamente brancas para evitar a bicharada.

Nos dias do chá a minha mãe ensaboava-nos um pouco mais calorosamente que o habitual e vestia-nos roupas engomadas e airosas. Depois vinham os penteados, cabelos primorosamente repuxados, traçados e presos com um laçarote bem alçado. Tudo culminava com o sapatinho de verniz. Um processo paralelo decorria em casa dos meus primos.

A Tia Elvira era de muita cerimónia!

Nós perfilávamo-nos à sua frente com as mãos nervosas cruzadas atrás das costas para a cumprimentar, depositando um beijo repenicado na sua face poeirada de rosa mate e seguidamente recebíamos a dádiva sempre igual da Tia Elvira: uma nota de vinte escudos muito bem embrulhada em papel de seda... ainda por causa dos micróbios. No centro da pequena sala havia uma mesa de camilha com sua saia rodada, onde apascentavam uns pratos fartos de bolos, bolachinhas e outras iguarias. O cheirinho intenso a bolo caseiro infiltrava-se nas nossas narinas e enlouquecia-nos as glândulas salivares. E por alguma razão que ainda hoje desconheço, aquilo tinha um efeito quase diabólico sobre nós. Começávamos a virar e a revirar os pés e as mãos num frenesim bulímico digno de se ver. No entanto, só tínhamos autorização para tirar uma única bolacha delicadamente com as pontas dos dedos. Aguados, abarcávamos discretamente aqueles manjares com os olhos gulosos e agradecíamos:

- Obrigada tia Elvira, esperando ansiosamente pelo tio Augusto, o homem das mãos largas que vivia dos sorrisos das suas muitas sobrinhas e sobrinhos-netos. Sem filhos, o tio Augusto, o tio rico da família fazia furor entre a criançada pois andava sempre carregado de guloseimas que distribuía graciosamente. Na bem-dita sala de estar havia ainda uma outra mesinha mais rebuscada , estilo império, encostada à parede onde repousava um telefone preto e robusto, e um ovo com um pintainho a sair da casca em lugar de destaque. O ovo da tia Elvira era objecto de grande estimação, e era feito da mais fina porcelana, biscuit, e fonte de admiração permanente da sua parte e também da nossa! Todos nos deliciávamos com aquele ” bibelô. E nestas idades ninguém sabe ver só com os olhos. Era grande a tentação de lhe tocar. Alguns de nós sonhavam sempre com o que era de todo proibido. O dito ovo tinha uma racha fingida na casca e um pinto esbaforido de asas abertas, com ar de quem ia levantar voo antes de tempo. Era uma imagem muito viva, quase real, e dizia-se lá por casa que era Limoges verdadeiro, do tempo da Maria Cachucha.