sábado, 1 de novembro de 2008

História em construção - Parte 1

Por Manuela Crespo

A tia Elvira era uma velhinha mirrada e encolhida com um ar severo já um pouco desbotado pelo tempo. A sua a face pergaminhada era coroada por uma farta cabeleira de fios de prata apartados por um risco que morria num carrapito na nuca. Tinha um ar austero com o seu nariz adunco, os seus lábio finos e afiados como laminas. Os seus olhos miudinhos perscrutavam-nos de alto a baixo, em busca de uma sujidade ou de algum desconcerto. Estava sempre sentada num cadeirão de braços, com motivos barrocos, dourados, forrado a veludo vermelho sanguinário. E ela ali permanecia imóvel, enovelada nos seus xailes, écharpes e mantas, toda de branco pérola. Além de tudo tinha manias. Muitas manias. Usava sempre níveas luvas de algodão impecáveis, por causa dos micróbios. Tinha uma imensa repugnância dos germes e defendia-se deles de todas as maneiras possíveis. Tantas vezes lavou as mãos que se feriu. Passou então a usar luvas de algodão imaculadamente brancas para evitar a bicharada.

Nos dias do chá a minha mãe ensaboava-nos um pouco mais calorosamente que o habitual e vestia-nos roupas engomadas e airosas. Depois vinham os penteados, cabelos primorosamente repuxados, traçados e presos com um laçarote bem alçado. Tudo culminava com o sapatinho de verniz. Um processo paralelo decorria em casa dos meus primos.

A Tia Elvira era de muita cerimónia!

Nós perfilávamo-nos à sua frente com as mãos nervosas cruzadas atrás das costas para a cumprimentar, depositando um beijo repenicado na sua face poeirada de rosa mate e seguidamente recebíamos a dádiva sempre igual da Tia Elvira: uma nota de vinte escudos muito bem embrulhada em papel de seda... ainda por causa dos micróbios. No centro da pequena sala havia uma mesa de camilha com sua saia rodada, onde apascentavam uns pratos fartos de bolos, bolachinhas e outras iguarias. O cheirinho intenso a bolo caseiro infiltrava-se nas nossas narinas e enlouquecia-nos as glândulas salivares. E por alguma razão que ainda hoje desconheço, aquilo tinha um efeito quase diabólico sobre nós. Começávamos a virar e a revirar os pés e as mãos num frenesim bulímico digno de se ver. No entanto, só tínhamos autorização para tirar uma única bolacha delicadamente com as pontas dos dedos. Aguados, abarcávamos discretamente aqueles manjares com os olhos gulosos e agradecíamos:

- Obrigada tia Elvira, esperando ansiosamente pelo tio Augusto, o homem das mãos largas que vivia dos sorrisos das suas muitas sobrinhas e sobrinhos-netos. Sem filhos, o tio Augusto, o tio rico da família fazia furor entre a criançada pois andava sempre carregado de guloseimas que distribuía graciosamente. Na bem-dita sala de estar havia ainda uma outra mesinha mais rebuscada , estilo império, encostada à parede onde repousava um telefone preto e robusto, e um ovo com um pintainho a sair da casca em lugar de destaque. O ovo da tia Elvira era objecto de grande estimação, e era feito da mais fina porcelana, biscuit, e fonte de admiração permanente da sua parte e também da nossa! Todos nos deliciávamos com aquele ” bibelô. E nestas idades ninguém sabe ver só com os olhos. Era grande a tentação de lhe tocar. Alguns de nós sonhavam sempre com o que era de todo proibido. O dito ovo tinha uma racha fingida na casca e um pinto esbaforido de asas abertas, com ar de quem ia levantar voo antes de tempo. Era uma imagem muito viva, quase real, e dizia-se lá por casa que era Limoges verdadeiro, do tempo da Maria Cachucha.

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