terça-feira, 9 de dezembro de 2008

História em Construção - Parte 8

Por Moira Difelice

Tremo. Transpiro. Estou confuso. Num estado parecido àquele em que te deixei na Índia, Joaquim. Ia jurar por Deus que já não estavas entre nós. Eras mesmo tu ao telefone? É estranho dizê-lo, senti-lo passados estes anos todos mas pareceu-me nitidamente que eras tu – a tua voz cheia e pausada. Já um pouco apagada pelo tempo, é certo, mas eras tu. Conseguiste então vencer a febre da malária? Essa febre que te corroía o corpo, que te escanzelou quase até aos ossos, que te deixava a suar em bica, levando a delírios? Quase não conseguias falar e já nem me reconhecias quando te deixei. Os médicos tinham-me dado a certeza de que não sobreviverias. Deixei-te louco, às portas da morte, numa cama estreita de um quarto de fundo em casa do Miller. Miller que nos aliciara para o contrabando dos rubis para Paris e a quem devo a podre abastança que me sustenta hoje, por tê-lo traído.
Revejo imagens entre a Índia e Portugal. A chegada a Paris e a primeira vez que te vi, Elvira, ao piano do Café Constance. Fiquei logo absorto por ti, pela tua pele alva e luminosa, pelo vigor dos teus traços austeros, pela vida triste que raiava dos teus olhos. Tinhas ido para a cidade luz para te dedicares ao piano e tocavas no Constance aos fins de tarde para poderes sustentar-te e pagar o curso.
Entretanto a guerra rebentou e tiveste de fugir para Portugal. E eu, ironia das ironias, eu que ali tinha chegado para salvar um judeu, fugi contigo. Miller incumbira-me de fazer chegar os rubis a Emil, seu amigo, para que ele pudesse igualmente escapar ao jugo dos nazis. Em troca, ficaria com uma parte dos rubis para mim. Por isso tive de te deixar Joaquim, para salvar Emil pois a guerra rebentaria em breve e garantiram-me que não viverias…
Nunca te encontrei, Emil. Na verdade, não te quis encontrar, nem sequer te procurei e carrego esse fardo comigo desde então. Assim que te conheci Elvira, esqueci a minha missão de salvar Emil e concentrei todas as minhas forças em ti. Quis apagar os erros do passado e começar um futuro melhor contigo, em Portugal. Mas tu, passado que tentei despegar de mim, da minha cabeça, do meu corpo, das minhas entranhas, continuas a assaltar-me em sonhos, sempre. E agora, em vida também!
E tu, Deus? Deus em que não acreditava mas que usei como apoio e disfarce desde a fuga para Paris. Invoco-te a toda a hora mas já não sei quem és, não sei se alguma vez soube. Nunca te vi, nunca te senti. Mas, agora que era uma boa altura para apareceres, para te revelares, onde estás? Serás capaz de me explicar, tu, Deus, como terá Joaquim chegado até a mim passados estes anos todos? Quem te terá conduzido a mim, Joaquim? Quem me trai e procura vingança agora em fim de vida? Serás tu, Deus? Ou tu, Joaquim? Ou Miller? Ou Elvira? Ou Bernarda?
(Olha para a pistola) Tu que me acompanhaste também desde a Índia… Passarei a dormir contigo, debaixo da cabeça pois talvez venham resgatá-la. Poderiam Joaquim ou Miller encontrar-me aqui em Porto de Mós?
Nunca te cheguei a usar mas talvez agora te venhas a provar útil. Talvez te estreie em em mim antes que Miller ou Joaquim apareçam. Por ti, Elvira, não tenho medo de deixar este mundo. Já praticamente não comunicamos, dormimos em camas separadas, tens a companhia e a fidelidade de Bernarda e a alegria que escondes mas sentes com os pequenos traquinas. Por vocês, pequenos infantes e donzelas, mas sobretudo por vocês, pequenas donzelas, sim, tenho pena de deixar este mundo. Queria muito ver-vos crescer, Mariana, Teresa, Catarina, …