Por Manuela Crespo
A casa dos meus tios era um majestoso palacete cor-de-rosa que ficava mesmo ao pé da minha. Tinha uma porta lateral encavalitada na ladeira com a particularidade única e exemplar de possuir uma campainha eléctrica, coisa nunca vista naqueles tempos mais dados a aldrabas e sinos de badalo. Era sempre um momento solene o de tocar a campainha. depois esperávamos alguns segundos, empurrávamos a porta sempre entreaberta e gritávamos pela fresta:
- Dá licença Tia Elvira? Empertigávamo-nos muito direitas. À nossa espera estava a velha Bernarda de avental rendado sobre a farda preta que nos encaminhava de imediato para a porta da dita sala. Enquanto a Bernarda anunciava a nossa presença, aproveitávamos aqueles momentos para correr loucamente pelo imensos corredores da mansão. O nossos passos ressoavam no soalho de madeira , como se a casa se alegrasse por receber enfim crianças. Rapidamente nos chamavam à ordem e então éramos alinhadas para sermos recebidos pela dama. Quando finalmente entravamos na saleta da especial senhora, havia sempre um laço caído uma meia derrubada ou uma madeixa solta. As nossas faces rosadas da correria eram uma lufada de ar fresco naquele mausoléu.
Havia porém outros dias menos formais de visita ao palacete. Bastava o tio Augusto estar presente.
Era uma figura imponente, que inspirava confiança. Homem de ombros largos, sorriso rasgado e olhos aguados velava sempre por nós. Era de longe o tio preferido...com ele podíamos tirar as bolachas que nos apetecia, comer o bolo perfumado até fartar, jogar às escondidas nos labirintos da casa e fazer muitas outras coisas impensáveis sobre a égide da tia Elvira. Nesses dias escondia-me debaixo de uma clarabóia colorida que ficava no topo das escadas em caracol, mesmo no centro da casa. Era como se entrasse num mundo mágico e proibido. Aí ficava, inebriada pelas transparências coloridas que os vidros projectavam nas paredes como se de um caleidoscópio se tratasse. Miríades de arco-íris! Rapidamente me abstraía daquele mundo e entrava num estado onírico onde tudo podia acontecer. O pintainho do ovo tornava-se real e até algumas histórias com tesouros aconteciam e desenrolavam-se à minha frente como num filme.
Finalmente, alguém me encontrava e me levava de volta ao mundo real:
A salinha do chá, as bolachas, o ovo de porcelana, e pelo menos uns bons vinte minutos sentada num cadeirão, de pernas penduradas e muito juntas, a olhar para a ponta dos sapatos de verniz. Finalmente o tio Augusto condoído do ar infeliz que se espelhava no meu rosto lá me mandava embora com os bolsos a abarrotar de gulodices. Aí umas três vezes ao ano havia dias muito especiais, em que em vez do chá havia um jantar. Era posta a mesa com pompa e cerimónia, talheres de prata de várias qualidades e pretensões, copos para várias beberagens, guardanapos adamascados e uma pirâmide de pratos. Estes jantares, pelo menos tinham o condão de serem muito previsíveis no que dizia respeito à ementa. Sopa de cenoura, soufflé de bacalhau, e seguidamente bife com batatas fritas. Sempre igual. Tudo impecavelmente confeccionado, delicioso, servido com um ritual imutável pela Bernarda sempre muito atenta à ordem por categorias. Os meninos é claro, ficavam para o fim. E acho que se ela pudesse mandar , nem provávamos! Depois de terminada a refeição, quando a conversa se começava a animar escapulíamo-nos dali para fora, eu, a minha irmã Catarina, e a Mariana, o Luís e a Teresa, primos. E tomávamos conta da casa. Esquadrinhávamos tudo até à exaustão da velha Bernarda que montava guarda como um cão feroz. Era nessas alturas que eu os levava à velha clarabóia onde à noite encontrava outros tesouros por explorar. Deitávamo-nos todos no chão de barriga para cima a olhar para o céu estrelado e começavam as história. Cada um contava uma história, de preferência de terror, cada uma pior que a anterior, até ficarmos aterrorizados, a olhar em volta e a ouvir milhares de ruídos que uma casa velha tem para oferecer. Finalmente a Catarina soçobrava, e num espasmo de terror desatava a soluçar. Tinha de ser mimada e consolada, e finalmente subornada para não contar nada aos adultos, e quando nem o suborno funcionava então era ameaçada de morte por almas do outro mundo se abrisse o bico. Só assim se acalmava e acabava por adormecer ali encostada a um de nós , embalada por histórias menos pavorosas. Um a um, todos caíamos, e assim as noites em casa da tia Elvira se diluíam nos sonhos da infância.
Uma vez porém, as coisas não correram de feição.
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