quinta-feira, 6 de novembro de 2008

História em construção - Parte 4

Por Daniel Escobar

Ainda hoje não consigo esquecer do rosto de tia Elvira e como ele havia se transformado. Rios de sangue pareciam ter corrido pelos sulcos que cortavam a sua face, queimando a sua alva pele. Pela primeira vez tínhamos visto o carrapito da sua nuca a ser desfeito por mãos trêmulas e descontroladas. Os olhos miudinhos rasgaram-se em um grito que vinha das profundezas de um lugar completamente desconhecido para nós até então.

Todos estávamos petrificados com a situação e assombrados com a face da tia Elvira como nunca havíamos estado mesmo nas noites de trovão e histórias de fantasmas. Catarina, a mais nova, desandou a chorar, o que tornou tudo ainda mais embaraçoso. Mesmo nossos pais pareciam atordoados pela reação de tia Elvira.

Foi neste momento que surgiu Bernarda que, como uma enguia, serpenteou pela sala. Ela passou por trás de tia Elvira e tocou-lhe os ombros. Então avançou em direção ao ovo despedaçado e as pedras vermelhas que jaziam no chão, ficando de cócoras entre nós e tia Elvira. A serviçal então lançou-me o olhar mais gélido de que possa me recordar. Levantou-se e dirigiu-se para a porta que dava acesso ao outro cômodo da casa. Antes de sair, parou sob o batente e, segurando os pedaços do ovo e as pedras nas mãos, olhou de forma cúmplice para tia Elvira, cuja expressão começava voltar ao seu conhecido ar austero.

Tudo isto não levou mais do alguns minutos mas, conforme descobriria mais tarde, entre aqueles jogos de olhar, uma parte de uma vida despedaçada havia sido exposta diante da família. Tia Elvira refez o carrapito e o sangue desceu de sua face. Ela respirou fundo, olhou-nos mais uma vez e deu as costas, voltando para seus aposentos. Catarina ainda soluçava quando tio Augusto interveio com seu largo sorriso.

- Vamos lá, crianças. Acidentes acontecem não é mesmo? Mas depois vocês contam qual de vocês quebrou o ovo, pois são bons meninos!

Havia também um "quê" de cumplicidade com a história na voz de tio Augusto. Seus métodos só eram muito diferentes do estilo "cão de guarda" de Bernarda.

Os outros adultos entreolharam-se, encararam o episódio apenas como um acidente doméstico envolvendo crianças levadas e uma velha solitária que estava valorizando demais um bibelô. Toda a confusão fez com que eles se esquecessem dos rubis, que passaram a ser encarados como meras pedras vermelhas.

Mas eu sabia que muito mais havia se passado naquela sala naquela noite. E o vermelho daqueles rubis se transformaria em um rio de sangue que atravessaria anos da nossa existência.

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