sábado, 3 de janeiro de 2009

História em Construção - Parte 9

Por Stephanie França

Elvira revirava-se na cama, a custo, devido à artrose permanente, que apesar do súbito acrescento de adrenalina de há instantes, não parava de a atormentar. Facto era que não conseguia dormir. A sua mente insistia num turbilhão de assombros passados, nada lhe parecia concreto, nem fácil. Tinha já idade para ser velha e aproveitar a doçura desse tempo. Mas não. Parecia-lhe que a vida regredia, ao invés de ser recompensada por anos de existência, de experiências acumuladas, sentia que cada vez mais, enfim, não podia voltar a ser feliz. Se alguma vez o tivesse realmente sido, pensava Elvira, talvez nunca realmente o tivesse sido. Talvez.
Passou-lhe Paris pela memória, dias afins nos cafés da Rue de la Huchette, sempre por detrás de um teclado… Já nem isso fazia. Tocar piano. Tinha deixado de o fazer quando casara com Augusto, pareceu-lhe uma boa ideia então. Era um homem grande com ar majestoso, mais velho claro, mas bastante atraente, e na verdade queria voltar para Portugal. Não que passasse grandes dificuldades em Paris, pois era bela, e eram também outros tempos, diga-se. Uma jovem daquelas, com educação e inteligência, nunca haveria de passar fome naquela cidade. De alguma maneira, alguns anos de calos nos dedos, e homens galantes a persegui-la, e mulheres cínicas a lançarem-lhe agoiros, bom, facto era que estava desesperada para voltar para Portugal, e Augusto e a Guerra apareceram no momento exacto. No início, como qualquer início, havia uma inocência inerente à sua nova situação de ser casada e entregar-se àquele homem que afinal, pouco conhecia. Poderia dizer que se apaixonou, apesar de hoje, ali deitada, lembrar-se pouco do sentimento. Lembrar-se de situações em que se riu com Augusto e de se sentir feliz, talvez, mas não se lembrar realmente do que era ser apaixonada, de se sentir apaixonada. Não que isso hoje lhe servisse de muito.
A consciência de Elvira, aos poucos, começava a esmorecer. Já ia longa a noite, muito mais longa do que o costume. O seu quarto emanava uma essência activa a alfazema, à qual ela estaria habituada. Os seus lençóis de linho iam-se acomodando ao seu corpo. O silêncio da casa, aos poucos, tornava-se ensurdecedor na sua mente cansada, até que adormeceu. Apenas por instantes.
Acordou num sobressalto, ao ouvir alguém no corredor. Não se mexeu num primeiro momento, quando os seus olhos abriram, tentando decifrar quem estaria acordado àquela hora da madrugada. Talvez Augusto, ou mesmo Bernarda acordassem muitas vezes de madrugada, mas como não era hábito seu estar desperta, achou o acaso algo extraordinário.
Quase sem respirar, pegou num xaile, levantou-se e andou até à porta do quarto, e fazendo o mínimo barulho possível, rodou a maçaneta. Ouviu uma voz no lado oposto do corredor, de onde devia ser o escritório, mas não conseguiu distinguir bem nem o que se dizia nem de onde vinha realmente a voz. Viu uma luz ténue ao fundo do corredor, como se passasse por debaixo de uma porta fechada. Saiu sorrateiramente do quarto e caminhou em direcção ao escritório guiada por uma curiosidade atroz, passou a casa de banho e parou por momentos, sentindo que alguém se mexia. Continuou a andar, visto não ouvir mais nenhum movimento, e logo de seguida a voz calou-se subitamente, ou falava muito baixo, num sussurro talvez, pois mal se ouvia. Passou a biblioteca e o quarto de hóspedes, olhando para trás, na escuridão, sentindo-se quase criminosa na sua própria casa. E finalmente, a luz adensou-se, revelando-se pelas frestas da porta do dito escritório.
Deu os dois passos restantes para alcançar a porta fechada e pôs-se à escuta, respirando devagar para nada interferir na sua tarefa. No fundo da sua mente pensava que deveria ser Augusto a trabalhar nas suas contas, ou na sua poesia, para o que lhe tinha dado a velhice. Mas ali, imóvel, por detrás da porta, apercebeu-se que não era ele. Só poderia ser Bernarda, concluiu. O que andaria a governanta a fazer no escritório àquela hora da madrugada, pensou indignada de imediato. Não conseguiu conter mais a sua curiosidade, e num gesto firme, agarrou na maçaneta e abriu a porta, apenas para encontrar a dita serviçal em roupão, agarrada ao telefone.
“Mas o que vem a ser isto?!” exclamou Elvira.